Registado a registar...

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Pag. 217

A alma humana é um manicómio de caricaturas. Se uma alma pudesse revelar-se com verdade, nem houvesse um pudor mais profundo que todas as vergonhas conhecidas e definidas, seria, como dizem da verdade, um poço, mas um poço sinistro cheio de ecos vagos, habitado por vidas ignóbeis, viscosidades sem vida, lesmas sem ser, ranho da subjectividade.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Pag. 210

A arte é a expressão intelectual da emoção, distinta da vida, que é a expressão volitiva da emoção. O que não temos, ou não ousamos, ou não conseguimos, podemos possuí-lo em sonho, e é com esse sonho que fazemos arte... Assim há dois tipos de artista: o que exprime o que não tem e o que exprime o que sobrou do que teve.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

Pag. 200

Nunca sabemos quando somos sinceros. Talvez nunca o sejamos. E mesmo que sejamos sinceros hoje, amanhã podemos sê-lo por coisa contrária.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Pag. 212

Feliz quem não exige da vida mais do que ela espontaneamente lhe dá, guiando-se pelo instinto dos gatos, que buscam o sol quando há sol, e quando não há sol o calor, onde quer que esteja.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

Pag. 203

Tudo quanto tenho dito é como este céu alto e diversamente o mesmo, farrapos de nada tocados de uma luz distante, fragmentos de falsa vida que a morte doura de longe, com seu sorriso triste de verdade inteira.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

Pag. 202

O que antes era moral, é estético hoje para nós... O que era social é hoje individual...

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

Pag. 197

Se não faço o bem, por moral, também não exijo que mo façam. Não gosto que me dêem coisas; parecem com isso obrigar-me a que as dê também - aos mesmos ou aos outros, seja a quem for.
Não tenho fé em nada, esperança de nada, caridade para nada. Abomino com náusea de todas as sinceridades e os místicos de todos os misticismos ou, antes e melhor, as sinceridades de todos os sinceros e os misticismos de todos os místicos. Essa náusea é quase física quando esses misticismos são activos, quando pretendem convencer a inteligência alheia, ou mover a vontade alheia, encontrar a verdade ou reformar o mundo.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

Pag. 194

Existo sem que o saiba e morrerei sem que o queira. Sou o intervalo entre o que sou e o que não sou, entre o que sonho e o que a vida fez de mim. A média abstracta e casual entre coisas que não são nada, sendo eu nada também.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

Pag. 191

A lâmpada votiva oscila incerta no templo onde já ninguém anda, estagnam os tanques ao sol das quintas desertas, não se conhece o nome inscrito no tronco outrora, e os privilégios dos ignotos foram, como papel mal rasgado, pelas estradas cheias de um grande vento, aos acasos dos obstáculos que os pararam.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

Pag. 191

E eu hei sempre de sentir, como os grandes malditos, que mais vale pensar que viver.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Pag. 190

Nada me comove que se diga, de um homem que tenho por louco ou néscio, que supera a um homem vulgar em muitos casos e conseguimentos da vida. Os epilépticos são, na crise, fortíssimos; os paranóicos raciocinam como poucos homens normais conseguem discorrer; os delirantes com mania religiosa agregam multidões de crentes como poucos (se alguns) demagogos as agregam, e conseguem uma força íntima que estes não logram dar aos seus sequazes. E isto não prova senão que a loucura é loucura.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Pag. 190

Depois de uma incursão larga na grande poesia, aos montes da aspiração sublime, aos penhascos do transcendente e do oculto, sabe melhor que bem, sabe a tudo quanto é quente na vida, regressar à estalagem onde riem os parvos felizes, beber com eles, parvo também, como Deus nos fez, contente do universo que nos foi dado e deixando o mais aos que trepam montanhas para não fazer nada lá no alto.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

Pag. 183 / 184

Parece, até, que o Destino tem sempre procurado, primeiro, fazer-me amar ou querer aquilo que ele mesmo tinha disposto para que no dia seguinte eu visse que não tinha ou teria.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Pag. 193

Tudo quanto pensei, tudo quanto sonhei, tudo quanto fiz ou não fiz - tudo isso irá no outono, como so fósforos gastos que juncam o chão em diversos sentidos, ou os papeis amarrotados em bolas falsas, ou os grandes impérios, as religiões todas, as filosofias com que brincaram, fazendo-as, as crianças sonolentas do abismo.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Pag. 186

Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos - a ânsia de coisas impossíveis, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de não ser outro, a insatisfação da existência do mundo.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Pag. 106

Trazem-me a fé como um embrulho fechado numa salva alheia. Querem que o aceite para que o não abra.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

Pag. 98

O próprio Eu, o de cada um de nós, é talvêz uma dimensão divina.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

Pag. 97

Talvêz se descubra que aquilo a que chamamos Deus, e que tão patentemente está em outro plano que não a lógica e a realidade espacial e temporal, é um nosso modo de existência, uma sensação de nós em outra dimensão do ser.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

Pag. 94

Que os Deuses todos me conservem, até à hora em que cesse todo este aspecto de mim, a noção clara e solar da realidade externa, o instinto da minha inimportância, o conforto de ser pequeno e de poder pensar em ser feliz.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

Pag. 137

... a banalidade é uma inteligência e a realidade, sobretudo se é estúpida ou áspera, um complemento natural da alma.
Se eu tivesse sido rico, resguardado, escovado, ornamental, não teria sido nem esse breve episódio de papel bonito entre migalhas; teria ficado num prato da sorte - «não, muito obrigado» - e recolheria ao aparador para envelhecer. Assim, rejeitado depois de me comerem o miolo prático, vou com o pó que resta do corpo de Cristo para o caixote do lixo...

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

Pag. 130

Não é por bondade que isto acontece, mas sim porque quem se torna ridículo não é só para mim que se torna ridículo, mas para os outros também, e irrita-me que alguém esteja sendo ridículo para os outros, dói-me que qualquer animal da espécie humana ria à custa de outro, quando não tem o direito de o fazer. De os outros se rirem à minha custa não me importo, porque de mim para fora há um desprezo profícuo e blindado.

Pag. 105

Assim como o Cristianismo não foi senão a degeneração bastarda do neoplatonismo abaixado, a judaização do helenismo pelo romano, assim nossa época, senil e cancerígena, é o desvio múltiplo de todos os grandes propósitos, confluentes ou opostos, de cuja falência surgiu a era com que faliram.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Pag. 173

Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade e a hiperexcitação.

Pag. 171

Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar.

Pag. 170

No meio do meu trabalho de todos os dias, baço, igual e inútil, surgem-me visões de fuga, vestígios sonhados de ilhas longínquas, festas em áleas de parques de outras eras, outras paisagens, outros sentimentos, outro eu.

Pag. 169

Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a inteligência que há nessa estupidez.

Pag. 167

Tudo quanto fazemos, na arte ou na vida, é a cópia imperfeita do que pensámos em fazer. Desdiz não só da perfeição externa, senão da perfeição interna; falha não só a regra do que deveria ser, senão a regra do que julgámos que poderia ser.

Pag. 165

Serei sempre, sob o grande pálio azul do céu mudo, pajem num rito incompreendido, vestido de vida para cumpri-lo, e executando, sem saber porquê, gestos e passos, posições e maneiras, até que a festa acabe, ou o meu papel nela...

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Pag. 164

... manifestação de operários. Era um grupo compacto de estúpidos animados, que passou gritando coisas diversas diante do meu indiferentismo alheio. Os que verdadeiramente sofrem não fazem plebe, não formam conjunto. O que sofre sofre só.

Pag. 163

Os homens de acção são os escravos involuntários dos homens de entendimento. Narrar é criar, pois, viver é apenas ser vivido.
Temos o que abdicamos, porque o conservamos sonhado, intacto, eternamente à luz do sol que não há, ou da lua que não pode haver.

Pag. 162

Tudo quanto de desagradável nos sucede na vida - figuras ridículas que fazemos, maus gestos que temos, lapsos em que caímos de qualquer das virtudes - deve ser considerado como meros acidentes externos, impotentes para atingir a substância da alma. Tenhamo-los como dor de dentes, ou de calos, da vida, coisas que nos incomodam mas são externas ainda que nossas, ou que só tem que sofrer a nossa existência orgânica ou que preocupar-se o que há de vital em nós.
Quando atingimos esta atitude, que é, em outro modo, a dos místicos, estamos defendidos não só do mundo mas de nós mesmos, pois vencemos o que em nós é externo, é outrem, é o contrário de nós e por isso o nosso inimigo.

Pag. 161

O homem que existe, sensual, egoísta, vaidoso, amigo dos outros porque tem o dom da fala, inimigo dos outros porque tem o dom da vida, a esse homem que há que oferecer com que brinque às bonecas com palavras vazias de som e de tom?

Pag. 160

Em toda a alma que sente chega o dia em que o destino nela representa um apocalipse de angústia - um entornar dos céus e dos mundos todos sobre a sua desolação.

Pag. 156

Há venenos necessários, e há-os subtilíssimos, compostos de ingredientes da alma, ervas colhidas nos recantos das ruínas dos sonhos, papoilas negras achadas ao pé das sepulturas dos propósitos, folhas longas de árvores obscenas que agitam os ramos nas margens ouvidas dos rios infernais da alma.

domingo, 12 de setembro de 2010

Pag. 153

Quantas vezes os tenho ouvido dizer a mesma frase que simboliza todo o absurdo, todo o nada, toda a insciência falada das suas vidas. É aquela frase que usam de qualquer prazer material: «é o que a gente leva desta vida»... Leva onde? Leva para onde? Leva para quê? Seria triste despertá-los com uma pergunta como esta... Fala assim um materialista, porque todo o homem que fala assim é, ainda que subconscientemente, materialista. O que é que ele pensa levar da vida e de que maneira? Para onde leva as costeletas de porco e o vinho tinto e a rapariga casual? Para que céu em que não crê? Para que terra para onde não leva senão a podridão que toda a sua vida foi de latente? Não conheço frase mais trágica nem mais plenamente reveladora da humanidade humana.

Pag. 152

Nem conheço coisa maior, nem mais própria do homem que é deveras grande, que a análise paciente e expressiva dos modos de nos desconhecermos, o registo consciente da inconsciência das nossas consciências, a metafísica das sombras autónomas, a poesia do crepúsculo da desilusão.

Pag. 148

Achei sempre que a virtude estava em obter o que se não alcançava, em viver onde se não está, em ser mais vivo depois de morto que quando se está vivo, em conseguir, enfim, qualquer coisa de difícil, de absurdo, em vencer, como obstáculos, a própria realidade do mundo.

Pag. 146

Durmo quando sonho o que não há; vou despertar quando sonho o que pode haver.

Pag. 144

Não há sensação angustiada do mistério que possa doer como o amor, o ciúme, a saudade, que possa sufocar como o medo físico intenso, que possa transformar como a cólera ou a ambição. Mas também nenhuma dor das que esfacelam a alma consegue ser tão realmente dor como a dor de dentes, ou a dor de cólicas, ou (suponho) a dor de parto.