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quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Pag. 106

Trazem-me a fé como um embrulho fechado numa salva alheia. Querem que o aceite para que o não abra.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

Pag. 98

O próprio Eu, o de cada um de nós, é talvêz uma dimensão divina.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

Pag. 97

Talvêz se descubra que aquilo a que chamamos Deus, e que tão patentemente está em outro plano que não a lógica e a realidade espacial e temporal, é um nosso modo de existência, uma sensação de nós em outra dimensão do ser.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

Pag. 94

Que os Deuses todos me conservem, até à hora em que cesse todo este aspecto de mim, a noção clara e solar da realidade externa, o instinto da minha inimportância, o conforto de ser pequeno e de poder pensar em ser feliz.

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

Pag. 137

... a banalidade é uma inteligência e a realidade, sobretudo se é estúpida ou áspera, um complemento natural da alma.
Se eu tivesse sido rico, resguardado, escovado, ornamental, não teria sido nem esse breve episódio de papel bonito entre migalhas; teria ficado num prato da sorte - «não, muito obrigado» - e recolheria ao aparador para envelhecer. Assim, rejeitado depois de me comerem o miolo prático, vou com o pó que resta do corpo de Cristo para o caixote do lixo...

Fernando Pessoa in "Livro do Desassossego".

Pag. 130

Não é por bondade que isto acontece, mas sim porque quem se torna ridículo não é só para mim que se torna ridículo, mas para os outros também, e irrita-me que alguém esteja sendo ridículo para os outros, dói-me que qualquer animal da espécie humana ria à custa de outro, quando não tem o direito de o fazer. De os outros se rirem à minha custa não me importo, porque de mim para fora há um desprezo profícuo e blindado.

Pag. 105

Assim como o Cristianismo não foi senão a degeneração bastarda do neoplatonismo abaixado, a judaização do helenismo pelo romano, assim nossa época, senil e cancerígena, é o desvio múltiplo de todos os grandes propósitos, confluentes ou opostos, de cuja falência surgiu a era com que faliram.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Pag. 173

Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos por que se conquista o internamento num manicómio: a incapacidade de pensar, a amoralidade e a hiperexcitação.

Pag. 171

Posso imaginar-me tudo, porque não sou nada. Se fosse alguma coisa, não poderia imaginar.

Pag. 170

No meio do meu trabalho de todos os dias, baço, igual e inútil, surgem-me visões de fuga, vestígios sonhados de ilhas longínquas, festas em áleas de parques de outras eras, outras paisagens, outros sentimentos, outro eu.

Pag. 169

Uma só coisa me maravilha mais do que a estupidez com que a maioria dos homens vive a sua vida: é a inteligência que há nessa estupidez.

Pag. 167

Tudo quanto fazemos, na arte ou na vida, é a cópia imperfeita do que pensámos em fazer. Desdiz não só da perfeição externa, senão da perfeição interna; falha não só a regra do que deveria ser, senão a regra do que julgámos que poderia ser.

Pag. 165

Serei sempre, sob o grande pálio azul do céu mudo, pajem num rito incompreendido, vestido de vida para cumpri-lo, e executando, sem saber porquê, gestos e passos, posições e maneiras, até que a festa acabe, ou o meu papel nela...

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Pag. 164

... manifestação de operários. Era um grupo compacto de estúpidos animados, que passou gritando coisas diversas diante do meu indiferentismo alheio. Os que verdadeiramente sofrem não fazem plebe, não formam conjunto. O que sofre sofre só.

Pag. 163

Os homens de acção são os escravos involuntários dos homens de entendimento. Narrar é criar, pois, viver é apenas ser vivido.
Temos o que abdicamos, porque o conservamos sonhado, intacto, eternamente à luz do sol que não há, ou da lua que não pode haver.

Pag. 162

Tudo quanto de desagradável nos sucede na vida - figuras ridículas que fazemos, maus gestos que temos, lapsos em que caímos de qualquer das virtudes - deve ser considerado como meros acidentes externos, impotentes para atingir a substância da alma. Tenhamo-los como dor de dentes, ou de calos, da vida, coisas que nos incomodam mas são externas ainda que nossas, ou que só tem que sofrer a nossa existência orgânica ou que preocupar-se o que há de vital em nós.
Quando atingimos esta atitude, que é, em outro modo, a dos místicos, estamos defendidos não só do mundo mas de nós mesmos, pois vencemos o que em nós é externo, é outrem, é o contrário de nós e por isso o nosso inimigo.

Pag. 161

O homem que existe, sensual, egoísta, vaidoso, amigo dos outros porque tem o dom da fala, inimigo dos outros porque tem o dom da vida, a esse homem que há que oferecer com que brinque às bonecas com palavras vazias de som e de tom?

Pag. 160

Em toda a alma que sente chega o dia em que o destino nela representa um apocalipse de angústia - um entornar dos céus e dos mundos todos sobre a sua desolação.

Pag. 156

Há venenos necessários, e há-os subtilíssimos, compostos de ingredientes da alma, ervas colhidas nos recantos das ruínas dos sonhos, papoilas negras achadas ao pé das sepulturas dos propósitos, folhas longas de árvores obscenas que agitam os ramos nas margens ouvidas dos rios infernais da alma.

domingo, 12 de setembro de 2010

Pag. 153

Quantas vezes os tenho ouvido dizer a mesma frase que simboliza todo o absurdo, todo o nada, toda a insciência falada das suas vidas. É aquela frase que usam de qualquer prazer material: «é o que a gente leva desta vida»... Leva onde? Leva para onde? Leva para quê? Seria triste despertá-los com uma pergunta como esta... Fala assim um materialista, porque todo o homem que fala assim é, ainda que subconscientemente, materialista. O que é que ele pensa levar da vida e de que maneira? Para onde leva as costeletas de porco e o vinho tinto e a rapariga casual? Para que céu em que não crê? Para que terra para onde não leva senão a podridão que toda a sua vida foi de latente? Não conheço frase mais trágica nem mais plenamente reveladora da humanidade humana.

Pag. 152

Nem conheço coisa maior, nem mais própria do homem que é deveras grande, que a análise paciente e expressiva dos modos de nos desconhecermos, o registo consciente da inconsciência das nossas consciências, a metafísica das sombras autónomas, a poesia do crepúsculo da desilusão.

Pag. 148

Achei sempre que a virtude estava em obter o que se não alcançava, em viver onde se não está, em ser mais vivo depois de morto que quando se está vivo, em conseguir, enfim, qualquer coisa de difícil, de absurdo, em vencer, como obstáculos, a própria realidade do mundo.

Pag. 146

Durmo quando sonho o que não há; vou despertar quando sonho o que pode haver.

Pag. 144

Não há sensação angustiada do mistério que possa doer como o amor, o ciúme, a saudade, que possa sufocar como o medo físico intenso, que possa transformar como a cólera ou a ambição. Mas também nenhuma dor das que esfacelam a alma consegue ser tão realmente dor como a dor de dentes, ou a dor de cólicas, ou (suponho) a dor de parto.